Cento e oitenta dias de Bali
Seis meses em Bali, quase sete na estrada: aprendizados recentes e expectativas para o próximo capítulo
A gente se acostuma? Sim, e não. Já não fotografo as oferendas e os templos loucamente como antes. Sair de moto todas as manhãs é normal; até me esqueço da batalha interna que enfrentei para hoje dirigi-la com segurança. Sei que a simples manobra de um carro numa rua estreita pode formar uma fila gigantesca e testar minha paciência. A partir do momento em que coloco o meu capacete, preparo-me para um “rali”: sei que enfrentarei buracos, atalhos em que, por milagre, motos não se chocam, Gojeks e turistas apressados. O cenário exige minha atenção plena ao dirigir. Aprendi a dançar conforme o ritmo do caos: os pés no chão equilibram a moto no cruzamento movimentado, mas a intenção firme na direção do destino final me faz avançar sem hesitação. O calor é escaldante. A estação chuvosa tem sido extremamente seca, e ter experimentado a sensação do sol a pino queimando braços e pés não me faz mais esquecer do filtro solar. Não é à toa que os balineses usam casacos, calças e luvas nos deslocamentos diários em duas rodas. Ao conversar com um local, pronunciar as poucas expressões em bahasa que memorizei é receita para receber um simpático e genuíno sorriso como recompensa. Entrar nos warungs e pedir nasi merah (arroz vermelho) virou rotina. Também não confio mais quando eles dizem que “é só um pouquinho apimentado!" - o “pouquinho” deles é frequentemente demais para o meu paladar.
Então, avisto uma senhora levando o gebogan na cabeça. O colorido arranjo de frutas e flores pode chegar a um metro e meio de altura - uma oferenda aos deuses por bençãos infinitas que, depois de ser levada ao templo, é compartilhada entre família e amigos. Reparo também no kain poleng amarrado a uma majestosa árvore Banyan às margens da estrada caótica; o tecido com padrão xadrez representa a dualidade: yin e yang, luz e sombra, bom e mau - um não existe sem o outro e ambos devem ser mantidos em equilíbrio. Os cuidadores dos templos costumam usar o kain poleng como uma lembrança da sabedoria necessária para distinguir entre o certo e o errado em sua função. Sinto o cheiro de incenso vindo da fábrica que fica no caminho da escola das crianças, e me dou conta do quão especial é essa experiência. Será que daqui a 10 anos isso tudo ainda vai existir? Penso que deveria parar a moto e fotografar esses pequenos momentos. Não paro. A rotina, essa danada: ela me dá paz, mas também me engole. A estabilidade me ajuda, mas não me nutre. Sinto inquietude. Duas semanas antes de partir de Ubud já estava pronta para mudar o cenário, ansiosa por morar na praia semideserta que nos encantou 10 anos atrás, Canggu. E aqui estou. Testemunho a metamorfose do lugar: se há uma década a busca pelos poucos cafés que existiam era uma aventura por si só, hoje é fácil de encontrar lojas vendendo enfeites de - pasme! - Natal. Espanto-me porque Bali é hinduísta e a Indonésia é muçulmana; ou seja, o Natal não é comemorado por aqui. A turma vinda de fora é tão significativa em número que o comércio local se adaptou.
Respirar novos ares depois de cinco meses em Ubud traz uma mistura de sentimentos. Deixamos para trás pessoas queridas e histórias de vida que trouxeram aprendizados. Por exemplo, a japonesa que leva a meditação e o bem-estar individual tão a sério a ponto de se retirar de reuniões sociais deliberadamente para se isolar. E por que ela deveria ficar, se precisa de um tempo sozinha? No meu círculo social sua atitude seria considerada rude e antipática; enxerguei como um sinal de autenticidade. O casal que morava na Itália (ele é cubano; ela, russa) está reconstruindo sua vida em Bali pois tem uma visão catastrófica do futuro do mundo. Não compactuo com tal prognóstico, mas admiro o movimento hercúleo que estão fazendo na direção daquilo que acreditam. Os professores Sul-Africanos que moraram no Canadá vivem há três anos em Bali e têm uma opinião radical sobre o bem-estar social e a sustentabilidade. Minha visão é um tanto diferente, mas respeito os argumentos e levo para casa a intenção de gerar menos lixo e de questionar certos hábitos considerados normais. A ênfase em promover a autoestima das crianças desenvolvendo e confiando nas suas capacidades práticas, metodologia que eles usam na Wood School, me sensibilizou. Com um pequeno incentivo, Aisha aprendeu a mexer no fogão e agora faz sozinha seu lanche preferido, pipoca na panela. Do casal de pilotos britânicos em sabático (ambos serviram em guerras) ao pai holandês que sustenta a esposa e os dois filhos em Bali trabalhando no terceiro setor, conhecemos realidades diferentes e fascinantes. Os relacionamentos sociais construídos aqui me ensinaram a escutar o ponto de vista alheio com atenção e a extrair as lições que me cabem. Ao julgar menos e incorporar o que faz sentido, cresço um pouquinho.
Deixamos para trás a calmaria da floresta e a autenticidade cultural visível de Ubud para ficar perto do mar em Canggu. Esperamos que a nova etapa adicione uma perspectiva diferente à experiência: uma escola mais estruturada para as crianças, o surf de todo dia do marido, as caminhadas relaxantes e os pores do sol no oceano. Aos poucos, descobrimos cafés bacanas para trabalhar e enxergamos o progresso (duvidoso?) tomando conta do litoral oeste de Bali (a que custo?) com construções a todo vapor e o frenesi de ocidentais encantados com a ilha dos deuses - cada um com seus conceitos, seus motivos, suas buscas.
Não quero me acostumar. Ou será que estou me acostumando a um estilo de vida baseado em mudanças? Olhando para trás, constato: morar em Bali reacendeu o que eu já havia incorporado no meu DNA desde 2006, quando parti para estudar no Canadá sem dinheiro e sem ideia de como o mundo lá fora funcionava. A partir daquela experiência, mudei de país, cidade e/ou casa constantemente - a cada dois ou três anos. Na pandemia, tudo se aquietou de um jeito inimaginável. E o período de volta à minha cidade não natal, mas que considero como tal, forçou uma estabilidade que há tempos não sentia. É isso que vim buscar em Bali: reencontrar o que me faz sentir viva. Questionar, experimentar, estar aberta ao novo, me desafiar, não parar de me movimentar: para mim, aqui está o aprendizado. Como é fácil esquecer o que nos é caro no cotidiano sem sentido, aquele que nos engole. Se rotina significa manter hábitos bons, ela é bem-vinda: é preciso manter os exercícios físicos, a alimentação saudável, as relações sociais e meus valores fundamentais onde quer que eu esteja (um desafio e tanto na vida nômade). Se rotina significa aceitar que o momento em que me encontro é tudo o que existe, posso mudar. Posso buscar novos ares, novos desafios e me expor a diferentes jeitos de pensar e de funcionar.
Como disse Joseph Campbell no livro Pathways to Bliss: Mythology and Personal Transformation:
“[…] Over and over again, you are called to the realm of adventure, you are called to new horizons. Each time, there is the same problem: do I dare? And then if you do dare, the dangers are there, and the help also, in the fulfillment or the fiasco. There’s always the possibility of a fiasco. But there’s also the possibility of bliss.”
“Repetidamente você é chamado ao reino da aventura, você é chamado a novos horizontes. A cada vez, surge o mesmo problema: tenho coragem? E então, se você ousar, os perigos estão aí, e a ajuda também, na realização ou no fiasco. Sempre existe a possibilidade de um fiasco. Mas também existe a possibilidade de bem-aventurança.”
Antes de embarcar para a Ásia, a possibilidade do fiasco rondou meus pensamentos fortemente. Mas de modo algum cogitei não partir. Agora, na segunda etapa da viagem, mais do que nunca agradeço aos deuses o privilégio de estar aqui e de absorver os aprendizados da estrada. Tivemos percalços: de corte no pé a sutura na cabeça; de Bali belly a crises de gastrite e neuralgia; de desafios com despedidas e saudade imensa da família e de novos e velhos amigos ao fuso horário que dificulta reuniões com o Brasil; de questionamentos sobre trabalho a dezenas de decisões no escuro com grande impacto no bem-estar das crianças. Entender e solucionar problemas, aceitar ajuda, trocar ideias com quem pensa diferente, gerar mais perguntas do que respostas: essa é a graça de uma aventura fora da zona de conforto.
A chance do fiasco é onipresente, mas ela nunca será maior do que a vontade de encontrar, e de sentir, a bem-aventurança que há no mundo e na vida.
Daiana, seus textos sempre me emocionam. Você consegue nos conduzir pelas suas emoções de forma muito bonita. Obrigada por dividir.
Boa sorte na mudança!