Sessenta dias de Bali
Uma reflexão sobre as experiências e os aprendizados vividos em dois meses na ilha dos deuses
Dez mudanças, entre hotéis/vilas/pousadas, inúmeras fotos de oferendas, cheiros de incenso variados, cerimônias belíssimas e cachorros de rua. Um machucado do skate, outro do surf, outro de uma queda, incontáveis picadas de mosquito, alguns arranhões e roxos, dois olhos de peixe, uma virose gastrointestinal. Dois ratos na praça, diversas aranhas (inclusive “Glória, a gloriosa”, que vivia no nosso jardim) e geckos e lagartixas. Algumas cobras encontradas na escola. Um terremoto, pouca chuva, muito sol, incontáveis sorrisos e "Pagi!" (bom-dias!) e “Terima kasih!” (obrigadas!), inglês quebrado e gestos. Inúmeras corridas na garupa do Grab/Gojek (moto de aplicativo) e diversos frios na barriga com subidas nas calçadas, ultrapassagens duvidosas e raspões por um triz em árvores, postes e outros carros e motos.
Quatro lavanderias, mais campos de arroz do que posso lembrar, muita floresta. Praia de areia branca, praia de areia preta, rolê de barco, corais e um dos melhores snorkels da vida. Visitas a sete escolas, incontáveis decisões no escuro, dúvidas. Alguns gritos e brigas motivados por cansaço, fome, calor ou os três juntos. Muitas juras de amor e de orgulho dos pais e das crianças. Agradecimento todos os dias. Quatro pessoinhas em seu estado "pinto no lixo" com esse parque de diversões natural e interessante que é Bali. Um Galungan e Kuningan, várias outras cerimônias que não sabemos o nome, mas que despertam nossa curiosidade e nos impressionam pela estética, comprometimento e senso de identidade. Celebrações de casamento por toda a ilha no dia 22 de setembro - o dia certo para casar em 2023, de acordo com a religião hindu.
Muita paciência com interrupções constantes das crianças ao trabalhar de casa no horário compatível com o Brasil (de manhã cedo e à noite). Extrema concentração e foco nas horas em que cafés e coworkings são nosso refúgio para trabalhar em silêncio, enquanto os pequenos estão na escola. Atenção constante a detalhes (e belezas) do cotidiano. Pouco sono ao acordar com o som da reza às 5:55 da manhã que emana de auto-falantes espalhados pela cidade todos os dias. Cansaço logo após colocar as crianças para dormir às 21h - e cair no sono em seguida.
E os medos, Daiana?
Ahhh, os medos - esses a gente vai enfrentando, um por um, para servir de exemplo, transmitir segurança para as crianças, e ter o gostinho da superação. Quem diria que eu faria aulas para aprender a andar de moto? Pois fiz duas. Na auto-escola? Não, ao estilo balinês: na rua lateral de um mercado local (feira) que funciona até às 10h da manhã, não asfaltada, com cheiro de lixo misturado com incenso, e um professor que é também dono de um pequeno negócio de aluguel de motos. Alguns treinos feitos na própria ruela e no bairro que a rodeia, e partimos para locais com mais movimento; ele na garupa me passando as coordenadas. Dias depois, tirei coragem da cartola ao me arriscar no trânsito um pouco mais tranquilo (leia-se, com menos engarrafamento) de Amed. Andei como uma tartaruga a 20km por hora? Andei (e adoro tartarugas, by the way). Tive pensamentos diabólicos ao encarar as estradas esburacadas e cercadas de barrancos altos e valas profundas? Tive. Fiz malabarismo para carregar a bolsa com todo o equipamento de snorkel nas costas ao transitar entre praias, enquanto me virava para buzinar, acelerar, dar sinal, manter a mão no freio e a atenção irredutível na estrada e no movimento? Fiz. Mas também escutei da Aisha, ao me confessar uma medrosa crônica num desabafo, “A mamãe não é medrosa, porque ela supera todos os medos.” A frase bateu fundo no peito, esquentou o coração e me fez ter certeza de que o esforço vale a pena. O fato das crianças presenciarem nosso empenho ao recomeçar a vida em outro país, com suas maravilhas e seus perrengues, ao meu ver, é uma lição e tanto.
Diria que o maior ensinamento até agora foi a flexibilidade: a necessidade de adaptação a novos hábitos, à noção de conforto diferente da nossa, a um novo ritmo. Quer um exemplo? A eletricidade em Ubud é pré-paga. Isso mesmo, paga-se à medida em que se consome. Além disso, acomodações mais simples têm um aquecedor minúsculo que perde sua potência rapidamente. Portanto, aprendemos a tomar banho em 5 minutos, fazendo equilibrismo para lavar cabelo e corpo e dar tempo para o enxágue! Ainda, muitos Airbnbs são compostos por cômodos separados, imitando os complexos familiares locais. Várias gerações da família vivem num mesmo complexo - cada um tem seu cômodo e compartilha-se a cozinha e a área de descanso. Em nossa estadia atual, uma suíte fica em uma “casa", a outra suite e a sala ficam em outra “casa", e a cozinha é aberta e fica entra as duas. Portanto, um adulto dorme com uma criança em cada uma das “casas”. Já o ritmo ocidental… é simplesmente insustentável aqui. Motoristas de aplicativo demoram para começar a se movimentar, às vezes cancelam a corrida sem avisar, e você perde um tempão tentando encontrar outro. A imprecisão do Google Maps significa que é fácil de se perder. Ou seja, uma simples entrega de comida pode demorar mais que uma hora. Negócios, ruas e serviços podem fechar sem aviso prévio - eles funcionam de acordo com o calendário religioso, e as cerimônias são frequentes. Portanto, paciência é algo que temos treinado bastante por aqui. As frustrações são constantes, e nos resta achar soluções criativas para contornar situações diárias que não acontecem como planejado.
E por falar em flexibilidade: é incrível como as crianças se adaptam a qualquer lugar, língua ou situação. Não deveríamos, nós adultos, olhar para a vida como as crianças? Uma curiosidade genuína, um apetite por aventura, uma grande abertura ao novo - essa lição é nossa.
Poderia gastar horas aqui elencando os aprendizados - são muitos! Quer ver?
Problemas mal resolvidos o acompanham, não tem jeito. No meu caso, é uma gastrite tratada no começo da viagem, do jeito que deu, mas que ainda incomoda e provavelmente exigirá reparo na volta.
O planejamento da mala é importante, e precisamos de tão menos do que pensamos! Com tantas mudanças, artimanhas e equipamentos certos facilitam a vida. Pouco é ideal. A vaidade se esvai na primeira semana; adeus cremes de skin care e acessórios. Ser minimalista, levando só o essencial na bagagem, torna a experiência leve, literalmente.
O simples funciona, e é preciso enxergar além da aparência. A Wood School, escola que nossos filhos frequentam, tem uma estrutura mais do que básica. A primeira impressão é de estranhamento. Mas logo você entende que a proposta é completamente diferente: a natureza é o palco, as crianças são as estrelas. A inteligência social, o carinho e a expertise por trás do que é puramente material fazem a diferença.
Colaboração, dedicação, senso de identidade: o comprometimento dos balineses com sua fé impressiona. Estima-se que uma família balinesa gaste metade da sua renda na preparação e participação de cerimônias. Todos devem contribuir para os rituais - seja um casamento ou um enterro -, para ser considerado um verdadeiro integrante da comunidade. É lindo de se ver.
Meu lar é onde está a minha família. Com zero rede de apoio a não ser a escola, estamos inegavelmente mais unidos. As crianças se ajudam e tomam responsabilidades para si. Nós, adultos, temos mais empatia com sentimentos confusos e decepções do dia a dia que elas enfrentam. Afinal, já vivemos todas essas sensações ao morar em outros países e conhecemos os desafios, mas nos esforçamos para, agora, enxergá-los pelos olhos delas. Uma nova dinâmica, mais madura e compreensiva, tem se formado por aqui. Não importa o contexto, o nível de conforto ou de desconforto: sou mais feliz onde estamos juntos.
Presença e tempo de qualidade com a família não deveriam ser luxo. Imergir em uma cultura e um ambiente diferentes nos faz valorizar o presente. Cada dia é intenso e especial, com seus próprios problemas e belezas. Sinto-me cada vez mais capaz de resolver adversidades e entendo a importância de aproveitar cada minuto, pois a viagem é temporária. A vulnerabilidade da estrada me lembra constantemente de que valorizar a presença de quem amo e desfrutá-la é um grande componente da minha felicidade. Na viagem isso fica evidente todos os dias; na rotina exaustiva que temos no ocidente, é mais provável que não. A prática do Memento Mori dos estoicos, aquela de meditar sobre nossa mortalidade, é um ótimo antídoto a isso. Ao reduzir o zoom e olhar de uma perspectiva ampla, fica tangível: a vida é, essa sim, uma viagem temporária. Se eu viver por 80 anos, ou 29.220 dias, mais da metade disso, 14.975 dias, é passado. Como quero viver os próximos 14.245? O exercício deve ser diário: não quero temer a morte nem a mudança, mas viver uma vida de virtudes e aproveitar ao máximo meu tempo finito.
“Não é curto o tempo que temos, mas dele muito perdemos. A vida é suficientemente longa e com generosidade nos foi dada, para a realização das maiores coisas, se a empregamos bem. Mas, quando ela se esvai no luxo e na indiferença, quando não a empregamos em nada de bom, então, finalmente constrangidos pela fatalidade, sentimos que ela já passou por nós sem que tivéssemos percebido. O fato é o seguinte: não recebemos uma vida breve, mas a fazemos, nem somos dela carentes, mas esbanjadores.
A vida se estende por muito tempo, para aquele que sabe dela bem dispor”.
– Sêneca
Deixo um último recado aqui para você, leitor, para mim mesma e para meus filhos, daqui a alguns anos: vá, seja um pouco louco e um pouco corajoso. Viva cada experiência que a vida trouxer, mas também busque por suas verdades intensamente, aprendendo sobre si e sobre o mundo no caminho. É só sentindo na pele que se aprende, se supera, se cresce. Viver é metamorfosear, é abraçar a mudança e dançar com o caos. Há de se aprender a andar de moto no trânsito insano balinês! Há de se adaptar a desconfortos e a diferentes formas de pensar! Há de se aprender a dançar, lindamente, com o caos!
Daiana, eu adoro seus textos. Esse, em especial, achei bastante poético. Acho que reflete a experiência em Bali. Essa viagem em família me inspira. Obrigada por isso. Eu, que nunca saí do Brasil, viajo junto com vcs. E que sorte tem seus filhos de vivenciar tão cedo tudo isso.
Obrigada pelo texto. Obrigada por escrever.
Até breve!