A partida
Há sete dias, partimos. A sensação é de que já faz um mês. A última semana antes do embarque foi uma mistura bizarra de sentimentos.
Há sete dias, partimos. A sensação é de que já faz um mês. A última semana antes do embarque foi uma mistura bizarra de sentimentos: uma velha mania de organizar milimetricamente a mala que me acalma e me desespera ao mesmo tempo, a arrumação da casa que não acaba nunca, o apego às relações familiares, a ansiedade com a despedida, o cansaço e a tentativa de lidar com essa mesma confusão mental nas crianças da maneira mais serena possível. Angústia, alegria, irritação, expectativa, frenesi. Ficar nove meses na estrada parece pouco, mas a mudança é significativa; ela mexe com a rotina de todos ao nosso redor. Tentando ser prática, imagino o que vai caber na nova vida do outro lado do mundo, num contexto completamente diferente. Separo poucas roupas quentes, pois a passagem pela cidade mais fria, Amsterdã, será breve. Pondero que talvez tenhamos que desapegar de bens materiais no meio do caminho, que enfrentaremos pequenos incidentes médicos (reservo medicamentos básicos), e que a bagagem deve ser relativamente leve para facilitar os deslocamentos. Então, penso nas mudanças internas. Essas são difíceis de prever. Espera-se que haja muito crescimento - ora acompanhado de diversão, ora acompanhado de dor. Essa é a vida, certo? Mas na estrada tudo acontece intensamente: estamos mais expostos, vulneráveis… “saberei superar e aproveitar as surpresas do caminho (e guiar as crianças pelo mesmo rumo)?”
Como um filme, minha primeira experiência no exterior vem à mente: um mochilão viajando de Eurolines com pouquíssimo dinheiro no bolso, muita curiosidade, pão com nutella genérica de supermercado todos os dias para o jantar, noite-sim-noite-não dormindo no ônibus. Onze países europeus em 30 dias, acomodação suspeita na Cracóvia, rato em Edimburgo, greve de trem em Veneza, “que coisa, teremos que gastar mais num Ibis (e no fundo: graças a Deus um Ibis!)”. O entusiasmo e o brilho nos olhos ao descobrir que o mundo é muito maior, diverso e colorido do que eu ousava imaginar.
Depois, o mestrado fora que virou doutorado não terminado. Atravessar o caminho com neve batendo no joelho usando as botas de $2,25 compradas na garage sale, mal conseguindo se mexer dentro das várias camadas de casacos tupiniquins (não tinha grana para gastar com casaco gringo!), para pegar o ônibus sem ventilação (e fedido!) e chegar no laboratório. O esforço para mudar de universidade e conseguir uma bolsa de estudos, morar na caixinha de fósforos (apelido do meu cafofo) e andar até os pés adormecerem para economizar os $4 da passagem de ida e volta do metrô. Aprender técnicas novas para a pesquisa inovadora e a publicação na Nature e, no fim, ganhar um burnout. O crescimento pessoal, o entendimento de culturas antes desconhecidas, a empatia com semelhantes, “o mundo é a minha casa”.
Volto para a realidade: a bagunça em cima da cama, um corpo cansado e uma mente a todo vapor. Agora, viajo com duas vidas sob a minha responsabilidade e meu amor. Desejo proteger, mas desejo ainda mais testemunhar olhinhos admirados com a existência se desenrolando em línguas, parquinhos e mentalidades diferentes. Faz só sete dias, mas já são tantas as lições que me lembram de que, sim, vale a pena. Sair da zona de conforto é difícil; permanecer fora dela compensa.
Os dias voaram e nem acreditei que já era hora de sair para o aeroporto. Preparei-me para o momento mas me senti amadora, como naquela primeira vez com destino à Europa. Acho que disfarcei bem. As lágrimas inevitavelmente apareceram porque é impossível desapegar de quem amamos sem deixar uns cacos de coração partido espalhados sob a placa de Departures - não no jeitinho brasileiro de ser. Agradeço que preciso passar pelo raio-X em seguida - o foco em tirar computador da mochila, encaixar cada pertence em uma bandeja, instruir uma criança a não atravessar a máquina correndo, tirar o casaco da outra e não perder nada nem ninguém ameniza a loucura de sentimentos.
Sinto saudade antecipada, um certo alívio e alegria com o que está por vir. A conversa com a brasileira/holandesa alta e esbelta na fila do embarque desperta em mim um êxtase - novos ares fazem tão bem. É preciso sair da bolha com certa frequência, abrir a cabeça, enxergar novas possibilidades, novos jeitos de viver.
Entro no avião e penso em pendências de trabalho. Não será um sabático, e sim um experimento de vida nômade por um tempo. Viajar sem pressa, com planos flexíveis, priorizando a experiência da família e comprometidos com nossas carreiras: isso tudo sem deixar de sentir, adaptar, fluir.
Cabin crew, arm doors, cross-check! As turbinas aceleram o avião na pista; a subida é suave. Espio pela janela e jogo para o universo o meu desejo mais profundo: que seja leve! Junto os cacos para que o coração esteja (quase) inteiro para sentir as experiências que estão por vir. Que seja a construção de memórias de um tempo bem vivido; que voltemos, sim, crescidos, com histórias engraçadas e inusitadas para contar como as que eu me lembro até hoje das minhas experiências fora.
É, partimos. Agora, com os sensos totalmente acordados, voamos na direção de um sonho antigo que se renova a cada dia, a cada cidade, a cada país.
Que delícia de texto, que escrita suave e convidativa
Daiana, que texto delicado é bonito. A leitura flui tão facilmente! Obrigada por ele!
Boa sorte na sua jornada!
Vai dar tudo certo! Claro!
O voo sempre.
O voo sempre.
O voo sempre.
Andreza