Sobre desapegar de lugares que não são nossos
Não tenha medo de provocar uma mudança necessária - ela pode trazer resultados extraordinários
Há quase 12 anos, passei por uma grande mudança que me fez repensar uma trajetória de carreira pronta. Apesar de antigo, compartilho aqui este capítulo importante da minha vida, que gerou aprendizados sofridos, porém duradouros, e constituiu um pilar importante de quem me tornei. Quem sabe a leitura ajuda alguém passando por uma crise similar? Ao final, com a maturidade de hoje, reflito sobre as atitudes que poderiam ter mudado o rumo - ou não! - da história.
Texto escrito em Lausanne, Suíça, em março de 2012.
Em alguns dias faço 30 anos de idade. Olho para a esquerda e vejo a maioria dos meus amigos casando e tendo filhos. Olho para a direita e enxergo meus colegas com empregos bons e estáveis, construindo uma vida segura. Quando olho no espelho, entretanto, não vejo nenhum dos acontecimentos mencionados acima próximos de ocorrer na vida de quem vos fala. Pelo contrário: o que enxergo no desenho refletido no vidro é a figura de alguém que acabou de nascer. Não, você não leu errado: ela acabou de chegar ao mundo!
Pelo tom da narrativa acima, você deve estar pensando: agora ela vai descrever um acontecimento sério que a fez mudar de caminho e perceber que a felicidade está nas pequenas coisas… um texto clichê. Você acertou. Bem, mais ou menos. Tem um pouco de clichê também, mas o desafio foi gigantesco e o aprendizado, imenso. A superação aconteceu só depois de muita coragem para vencer várias batalhas, e no fim, a guerra. Graças ao destino, Deus, Buda ou qualquer outro ser superior em que você acredite, esta não é uma história de horror, com perdas humanas ou mutilações. Tem sim, uma parte de depressão, choro e um pouco de loucura, mas acaba com conquista e renovação.
Bom, vamos à história: 29 de fevereiro de 2012, dia bissexto de ano bissexto. Chego na minha quitinete, fecho a porta e largo minha mochila no chão. Sento em frente ao computador e abro o envelope que coletei na caixa do correio, que contém uma conta referente ao último exame de sangue que fiz: 50,60 francos suíços. “Mais uma coisa para fazer amanhã”, penso. Dou uma bocada no muffin de chocolate que comprei a caminho de casa, na loja de conveniência da principal estação de metrô da cidade. Leio alguns e-mails, passeio pelo facebook e abro minha conta da EPFL, o melhor instituto científico da Suíça. Já havia começado a escrever um rascunho do que queria dizer aos meus colegas. Mas ainda está incompleto, então continuo a missão e escrevo mais algumas palavras. De repente, sinto um nó na garganta e uma vontade de chorar. Aguento firme, termino o texto, e às 19h23min clico no botão “enviar”.
É inacreditável. Não sabia que tinha coragem de desistir. Como consegui sofrer por tanto tempo, e depois parar tudo quase no último minuto? Um desconhecido ouvindo esta história provavelmente diria: “Não é nada sério, ela apenas largou o doutorado. Quantas pessoas no mundo já fizeram isso? Várias! É problema de gente mimada”. Eu sei. Mas posso dizer com todas as letras: Foi difícil para mim. Muito difícil!
Difícil porque sempre fui aquela menina estudiosa, que faz tudo certinho e é o orgulho dos pais. Difícil porque desistir, na minha concepção, era sinônimo de fraqueza. Difícil porque foram dois anos e meio de um esforço extraordinário para aprender novas técnicas, superar desafios e aprender duas novas línguas: a da cidade em que morava (no caso, o francês), e a que se falava dentro do laboratório (já que a pesquisa era em uma área nova), e provar para todos e para mim mesma que eu era capaz. Difícil porque o caminho estava sendo pavimentado - a estabilidade e o sucesso, em teoria, estavam logo ali na frente. Enfim, as razões foram inúmeras. Mas existiu um momento em que o corpo começou a falar.
Incrível como a mente humana é poderosa. Incrível como as emoções afetam essa massa de células sólida e inteligente, o corpo: uma verdadeira fábrica de reações químicas que acontecem a todo minuto sem que nem sequer percebamos, e que o faz funcionar perfeitamente. Até o momento em que a mente não vai bem. O coração tenta alertar, comunicar, gritar, mas a razão, do alto de sua convicção, dá um jeito de calar o órgão da vitalidade. Mas ele não deixa barato: trata de conquistar aliados, e assim surgem a dor de cabeça, o enformigamento nos braços e o desconforto abdominal. O desânimo e as olheiras denunciam que algo vai muito errado, mas a razão parece não se deixar levar. O caderno, companheiro fiel, “escuta” alguns desabafos. Algumas comunicações externas e o desapontamento é geral: “Tão difícil conseguir uma posição em uma universidade excelente como esta! E você fez tudo sozinha! Vai abandonar tudo agora?”, ou “Chegar no Brasil com esse diploma vai trazer muito sucesso no futuro, continue! Falta pouco!” eram ouvidos com frequência. O tempo foi passando e a guerra continuava, coração e razão recrutando aliados cada vez mais poderosos. O chefe ficou sabendo da batalha, e alguns elogios e promessas fizeram com que a razão ganhasse mais uma vez. Mas, espere! A guerra ainda não estava ganha. Estava, na verdade, longe de terminar. Perguntas, perguntas e mais perguntas sem respostas... “Quem sou eu? Quais as minhas aptidões? Qual o meu dom? Sirvo mesmo para ser cientista? E acadêmica? Por que não dentista? Quem sabe escritora? Por que estou sofrendo tanto? Por que é tão difícil acordar de manhã e ir para o trabalho? Por que o desespero ao ouvir o alto-falante do metrô anunciar “Chuv”, a estação em que tinha que descer todos os dias para chegar no laboratório?” Esses questionamentos eram só uma amostrinha de tudo o que se passava pela minha cabeça.
Até que... chegou o grande dia. Mais uma consulta médica, mas pelo menos nesta, um milagre aconteceu. Estava sentada esperando o médico aparecer. Era ela: cabelos cacheados, pele morena e olhos vivos, vindo radiante em minha direção. Perguntou-me de onde vinha, e falei a palavrinha mágica: Brasil! “Ah, não acredito! Eu também sou brasileira!”. Mais um anjo que caiu do céu e pousou direto na minha vida. Finalmente alguém que entende a dificuldade de passar, sozinha, por um momento difícil no exterior, inserida em uma cultura completamente diferente da sua. Que teve a sensibilidade de perceber que eu estava a um passo de cair em depressão e a capacidade de impactar meu estado emocional com o jeitinho brasileiro.
Saí do consultório aliviada, mais calma, e com uma receita de comprimidos de passiflora para minimizar a insônia, que também pesava em meus olhos e meu coração. Este, por sinal, já sabia qual era o próximo passo a ser dado. Ele sabia, lá no fundo, que estava certo desde o começo. E esperava que agora, depois de mais essa crise, a razão conseguiria se convencer. E assim foi. A razão finalmente caiu em si, e decidiu, não antes sem mais vários dias se debatendo, prosseguir e enfrentar todas as consequências.
Impossível agradar a todos. Alguns apoiaram, outros criticaram, uns se admiraram e outros julgaram. Alguns desejaram estar na mesma situação - afinal, a alegria de ser LIVRE estava estampada no meu sorriso. Outros não entenderam o porquê de ter reagido somente naquele momento. O mais importante: pessoas mais próximas e queridas me apoiaram completamente, não sem alguma preocupação, claro, mas com toda sinceridade e encorajamento possíveis. E então o coração se aquietou. Não sem antes provocar borboletas no estômago na hora de anunciar a decisão final para o chefe e para os colegas, na hora de balbuciar as palavras que vinham repentinamente à cabeça e eram traduzidas em linguagem falada num impulso mais do que nervoso. Foi por pouco, mas segurei o choro. O sentimento seguinte foi de um alívio tão intenso que queria sair pulando, gritando, chorando e rindo de felicidade. Pode acreditar, não estou exagerando! Mal consegui esconder o gosto bom de liberdade durante os 15 dias seguintes em que ainda tive que trabalhar. Agora, jogando amostras e soluções fora, organizando resultados e os passando adiante, recolhendo artigos e os separando por assunto. Confesso que na hora de doar o meu livro de biologia molecular, presente do chefe de departamento da Universidade de Toronto, bateu aquela dorzinha. Na hora de explicar todas as tentativas de reconstrução dental utilizando células-tronco experimentadas ao longo daqueles anos, bateu um nó na garganta. E na hora de jogar todos os slides no lixo, porque não seriam mais usados e perderiam a validade, percebi a dimensão do trabalho realizado, o esforço que acompanhou o processo de descobertas. Entretanto, em nenhum momento duvidei de que estava tomando a decisão certa. Desde o começo sabia que tinha que ser assim. E no último dia saí do laboratório com um misto de alegria, tristeza, liberdade, gratidão, expectativa de sonhos a serem realizados, melancolia, consciência e esperança. De que as peças irão se encaixar. De que os caminhos irão se cruzar de algum jeito. De que toda a bagagem de vida e de mundo que acumulei até então vai se transformar em algo palpável, útil, e definir o que realmente quero ser quando crescer. De que eu possa utilizar toda essa experiência para ajudar os outros de alguma forma, e com isso, me realizar. E de que a felicidade no campo profissional não esteja longe de ser alcançada, pois afinal, acabei de nascer e tenho a vida inteirinha pela frente!
“O verdadeiro lugar de nascimento é aquele em que lançamos pela primeira vez um olhar inteligente sobre nós mesmos”
~ Marguerite Yourcenar
Em tempo…
Explicando contextos: O desconforto abdominal que sentia era, na verdade, uma intolerância à lactose que descobri alguns meses depois. Chamei de depressão, mas hoje penso que tive um burnout. De fato, experienciei várias crises de ansiedade com sintomas físicos (minha arritmia foi aos céus!). Sou dentista por formação; fiz um mestrado em ciência básica, investigando tumores orais no Canadá (com bolsa - e a saga da ajuda financeira é um assunto à parte!) e o doutorado era na área de biotecnologia e bioengenharia (com salário, já que um doutorando na Suíça é considerado staff e não estudante. O que economizei lá garantiu meu sustento nos próximos passos).
O que causou o imbróglio todo: confesso que já na entrevista com o orientador, minha intuição acendeu um alerta vermelho. Mas a oportunidade era única, o salário, muito bom (especialmente para quem tinha sofrido para conseguir uma bolsa de estudos no Canadá), e o assunto da pesquisa, muito interessante. Mandei a intuição ficar bem quietinha no canto dela (ou seja, priorizei aspectos que não os meus valores fundamentais - e, para ser honesta, tinha pouca consciência da importância deles nas decisões até então). No fim, foi um caso clássico de falta de adaptação cultural ao ambiente do laboratório, influenciado por alguns protagonistas (outro assunto à parte!), somado a um autoconhecimento imaturo.
Testei várias alternativas para permanecer no doutorado, tamanha era a crença (racional) de que não deveria desistir: cogitei trocar de orientador, tentei uma mudança para o laboratório do mesmo grupo localizado no campus da universidade, com uma equipe diferente (o lugar onde eu trabalhava fazia parte do complexo de um hospital), experimentei técnicas diversas para acelerar os resultados (a pesquisa era inovadora na época, e desenvolvi técnicas do zero, à base de muita tentativa e erro), busquei uma parceria em outro país. Entrei na academia com a esperança de que o exercício físico ajudasse a espairecer a mente (nesse momento já flertava com a corrida, mas os pensamentos diabólicos me venceram). Nada deu certo. Analisando friamente, penso que poderia ter encontrado uma opção viável, mas me faltaram forças (físicas e psicológicas). O custo teria sido alto.
Se me arrependo? O ano de 2012 foi difícil - o sentimento inicial de liberdade deu lugar a dúvidas e à culpa por ter largado um caminho previsível. Nessa época, acreditava piamente que a faculdade definiria meu futuro, e não enxergava alternativas fora da minha área de formação. Mas a experimentação e o movimento se provaram úteis e abriram novas estradas, inclusive em direção ao que faço até hoje: ajudo quem busca experienciar programas de pós-graduação (especialmente MBAs) nas melhores escolas do mundo por meio da TopMBA Consulting (que no começo se chamou Impact Factors, por que será? rsrs). Aqui, alio minhas habilidades de escrita e minha paixão por experiências fora da zona de conforto; honro de alguma maneira meu passado acadêmico ao mesmo tempo em que auxilio outras pessoas a se beneficiarem de instituições de ponta e a trazerem esse conhecimento de volta para o Brasil. A TopMBA também me propiciou liberdade geográfica - preciso apenas de computador e internet para trabalhar. Portanto, não me arrependo!
O que deveria ter feito para minimizar as chances de dar errado, e para remediar depois:
i) conversado com (ex-)orientados e com quem trabalhava no laboratório antes de aceitar a proposta (é o que recomendo hoje aos clientes da TopMBA ao pesquisarem sobre um programa, para entenderem a cultura da escola). Possivelmente sentiria o clima de pouca colaboração e de arrogância quanto ao conhecimento das técnicas, perceberia a situação desconfortável de alguns pós-docs (uma delas estava há sete anos sem nenhuma publicação e extremamente descontente com isso, mas sem voz), e entenderia as regras do laboratório (que só considerava publicar em revistas de altíssimo fator de impacto como Nature e Cell; portanto, um doutorando poderia ficar anos produzindo resultados que nunca seriam suficientes para atingir esse patamar, especialmente em pesquisas com poucos antecedentes). Com essas informações em mãos, saberia que não me encaixaria naquele ambiente.
ii) construído uma rede de apoio e compartilhado minha vulnerabilidade. Havia poucos mestrandos e doutorandos de fora da Europa, e a cultura do laboratório e dos tais protagonistas (não da universidade, que fique claro!) era de certa forma xenófoba (apenas alguns tinham privilégios, o que ficava claro no dia a dia e era comentado em algumas rodas). Isso deveria ter me afetado? Não. Eu deveria ter apenas focado no meu trabalho. Claro que um ambiente agradável faz diferença, mas não era o caso e dificilmente conseguiria provocar uma mudança sozinha. Portanto, restava-me aceitar e me adaptar. Introspectiva, também demorei a construir amizades profundas. Assim, não me senti à vontade para compartilhar as crises de ansiedade com meus colegas (e muito menos formalmente com a universidade). Uma rede maior e mais diversa certamente teria me apoiado e me ajudado a pensar em alternativas.
iii) atuado com diplomacia para pedir ajuda. Por estar inserida em uma cultura “arrogante”, o oposto do que havia experienciado no Canadá, senti que não deveria mostrar insegurança quando às técnicas (que, por serem novas para mim, naturalmente demandariam uma curva de aprendizado). O esforço para me virar sozinha demandou tempo e energia preciosos. E não reclamo do esforço; um doutorando precisa mostrar iniciativa e correr atrás, sim! Mas se tivesse aprendido a navegar o ambiente com a diplomacia que ele exigia, poderia ter balanceado melhor essa dedicação e diligência com a atitude de saber pedir ajuda sem achar que estava demonstrando fraqueza (que era a interpretação de quem me cercava).
Na primeira vez em que reli o texto, quase 12 anos depois, fui juíza severa: “quanto exagero!, que tom romântico e dramático”. Em seguida, coloquei-me no meu lugar. Fui generosa comigo mesma e entendi que o texto representa a visão de alguém passando por crises de ansiedade, um burnout, ou qualquer que tenha sido o diagnóstico na época; nunca saberei. O sofrimento foi real e me fez ganhar alguns cabelos brancos. Hoje, teria lidado com o processo de outro jeito. Mas seria injusto comparar meu ferramental atual com o da época, não? Fato é que o aprendizado foi enorme!
Acredito que tinha potencial de sucesso na carreira acadêmica. Depois da Suíça, cogitei aplicar para um doutorado na USP - continuava enxergando na pesquisa uma maneira de usar meus pontos fortes para contribuir com o mundo. E então, coloquei as lições aprendidas em prática: fiz networking, visitei o departamento do meu interesse, conversei com alunos e professores (e conheci pessoas excepcionais), imaginei o projeto de pesquisa que desenvolveria. Mas imergir novamente naquele universo, mesmo que dentro da minha própria cultura, fez minha intuição reclamar: aquele caminho não fazia mais sentido para mim. E, agora, eu tinha obrigação de escutá-la. Aos 30, minha expectativa era de estar construindo uma carreira sólida que começaria a dar frutos em breve. Desistir significava voltar à estaca zero, sem afiliação e sem direção. Mas não podia ignorar que o ambiente acadêmico não era mais o meu lugar - dentro ou fora do Brasil. Meu caminho era outro. Olhando para trás, acredito que mesmo que algum plano de mitigação tivesse funcionado, eu não teria completado esse doutorado. No entanto, poderia ter alcançado o mesmo destino com menos sofrimento se tivesse um autoconhecimento mais apurado. O tanto de crenças limitantes que essa experiência quebrou foi algo extraordinário!
Um último ponto: a intuição é representada no texto pela voz do coração - e desde que me conheço por gente, sou palco dessa essa batalha interna do sentimental com o racional. Pois bem, aos poucos tenho aprendido a dosar os dois lados. Algumas experiências têm me ensinado a domar o racional, como a corrida. Aqui em Bali, longe de julgamentos sociais e livre de escudos, tenho deixado a intuição falar mais alto… e o resultado tem sido interessante. Mas isso é assunto para outro dia!
Obrigada por ter lido até aqui! Deixo, abaixo, um post do Instagram onde compartilho algumas dicas de mudança de carreira, com base em minha experiência.
E você: já passou por alguma mudança que trouxe um grande aprendizado? Alguém luta batalhas parecidas por aí? Conte sua história nos comentários! Vou adorar ouvir o seu ponto de vista!
Sempre profundo e inspirador, obrigado por compartilhar ❤️!