Aos 10 anos, queria ser jornalista. Lia revistas de papel com admiração pelos autores, devorava livros e comecei, timidamente, um diário. Mas escrevia pouco, com receio de que familiares descobrissem meus “segredos”. Aos 17, queria ser médica. O poder de identificar doenças e curar pessoas parecia de outro mundo – uma espécie de “mestre dos magos” da vida real. Aos 20 e poucos anos, fantasiava sobre realizar trabalhos humanitários com instituições do tipo Cruz Vermelha – um desejo que nunca compartilhei com ninguém. Talvez fosse uma tentativa de aliar o conhecimento da área da saúde, que de fato adquiri em área correlata, à ajuda ao próximo. Aos 25, sonhava em descobrir a cura de cânceres raros da boca. A pesquisa básica que desenvolvi estava longe de aplicações práticas e inovadoras, mas de alguma forma isso me motivava. Logo depois, me senti privilegiada por manipular células-tronco em experimentos inéditos que poderiam ser a base da reabilitação oral dali a alguns anos. Antes de uma transição de carreira doída, também pensei que poderia salvar o mundo através de ONGs internacionais.
Até esse momento, eu precisava ter um propósito. Daqueles bem grandes, com letras garrafais.
Quando finalmente finquei os pés no chão, entendi que poderia ajudar os outros – aqueles ao meu redor – com o que estava ao alcance das mãos: juntando minha bagagem acadêmica e minha vivência no exterior com uma ocupação que pagasse as contas.
Não reinventei a roda, nem descobri a cura de nenhuma doença: um tapa na cara da minha inocente pretensão juvenil. Não tenho escala, mas acredito na importância do meu trabalho. Não salvei o mundo como um dia sonhei que podia. Mas, a cada cliente que ajudo a se expor a outras culturas e formas de pensar, a cada aluno que expande o seu potencial, imagino que esteja plantando uma semente. Talvez de tolerância, tão importante nesses dias obscuros. Talvez de transformação. Talvez de impacto real e global. Sim, nessa magnitude mesmo – internacional, intergeracional: talvez eles consigam realizar aquilo que eu apenas sonhei.
Nem sempre foi fácil reconhecer onde eu realmente era boa. Na faculdade, minimizava meu esforço. Na clínica, senti minhas limitações. Na pesquisa, me encontrei. Ali, percebi que talento ajuda, mas o esforço é o que me permitiu recomeçar em três áreas diferentes, em três países de culturas praticamente opostas. Esse aprendizado moldou a forma como encaro o trabalho hoje – e como planto minhas pequenas sementes de impacto.
Sempre tive uma intuição artística, expressa por meio de fotografia, música e escrita, mas nunca levei a criatividade a sério. Me ensinaram que arte era um luxo, mas sempre senti que era essencial. Acho que por isso me emocionei tanto ao descobrir essa fala do ator Ethan Hawke um tempo atrás*. Arte não é inútil. E é parte de quem sou, mas que jornada foi admitir isso.
“Você acha que a criatividade humana importa? Bem, a maioria das pessoas não passa muito tempo pensando em poesia, certo? Elas têm uma vida para viver e não estão realmente preocupadas com os poemas de Allen Ginsberg ou de qualquer outra pessoa — até que seu pai morre; elas vão a um funeral; você perde um filho; alguém parte seu coração. E de repente você está desesperado para dar sentido a esta vida. 'Alguém já se sentiu tão mal antes? Como eles saíram desta nuvem?' Ou o inverso — algo ótimo. Você conhece alguém e seu coração explode — você os ama tanto que nem consegue enxergar direito. Você fica tonto. 'Alguém já se sentiu assim antes? O que está acontecendo comigo?' E é aí que a arte não é um luxo — é, na verdade, sustento. Precisamos dela.”
Uma vida sem arte é vazia. E, publicando ou não, escrever é essencial para mim. Aquele diário que aos 10 tinha vergonha de preencher, hoje se enche de pensamentos com regularidade.
Como autônoma, quando eu morrer, meu trabalho morre comigo. Se tive propósito ou não, é assim que acaba. Meu impacto estará restrito a quem eu prestei serviços diretamente.
Já a escrita permanece, assim como meu amor no coração dos meus filhos. Hoje, aos 43, enxergo que meu propósito verdadeiro esteve diante do meu nariz o tempo todo. Ele não tem letras garrafais. Também não tem um alcance enorme, e não paga boletos. Pouco importa. Meu propósito é fazer o meu melhor naquilo que amo, e amo escrever. Se impacta alguém, não sei. Mas já me transforma. Espero que um dia impacte e transforme meus filhos.
Ainda assim, a escrita tem seus próprios caminhos. De forma discreta e sem pressa, como é da minha natureza, comecei esta newsletter. No ano passado, nossa jornada ao redor do mundo também me encorajou a enviar uma crônica e uma poesia para duas coletâneas, sem saber se seriam selecionadas. Foram. Ver meu nome nos livros Coletânea Estrangeiras – Histórias sobre as travessias do ser, idealizado e organizado pela querida
, e NÓS 2: textos de autoria feminina, publicado pelo Selo Off Flip, significou muito para mim. Senti um misto de surpresa e confirmação. Não porque buscava validação, mas porque percebi que minha escrita, que sempre foi um espaço íntimo, também pode se expandir de formas inesperadas.Nessa altura da vida, não posso me dar ao luxo de desperdiçar meus aprendizados humanos. Quero registrá-los – mesmo que meus filhos (e eventuais leitores) discordem, questionem ou os interpretem de maneira diferente da minha. Isso não deveria ser inútil, apesar de eu mesma relutar antes de espalhá-los por aqui. Será esse um legado suficientemente bom? Independentemente da resposta, é o maior legado que posso deixar — palavras e amor, na esperança de que permaneçam.

*Sugiro que assista a este vídeo até o fim, vale a pena (o áudio está em inglês, mas você pode ativar as legendas em português). Uma fala que amo: "Primeiro, precisamos sobreviver, e depois, prosperar. E para prosperar, precisamos nos expressar. Certo, aqui está o ponto crucial: precisamos nos conhecer. O que você ama? E se você se aproximar do que ama, quem você é será revelado a você — e isso se expandirá."
**Se você ainda não viu a trilogia Before Sunrise, Before Sunset, e Before Midnight, estrelada por Ethan Hawke e Julie Delpy, recomendo fortemente. São filmes em que “nada acontece”, mas repletos de reflexões lindíssimas sobre a vida.
Se nos salva, já se cumpre! Deixa nascer esse amor! Equilibrar essa balança de medo e dor neste mundo.
Que saudades da sua partilha, Querida Daiana!