Meu corpo jogado no banco denuncia o cansaço causado pela corrida, as caminhadas, a festa para celebrar a vida de um amigo e as poucas horas de sono do dia anterior. As pálpebras, pesadas, insistem em piscar demoradamente. Os ouvidos escutam as instruções no caso de uma emergência, mas as ignoram. A vontade é de dormir, mas o nervosismo, companheiro de todo santo voo, me mantém alerta.
A voz metálica do piloto anuncia que está na hora de subir às nuvens. Um momento de tensão paira no ar gelado do avião, e os segundos que antecedem a velocidade de decolagem custam a passar.
O coração acelera com as turbinas. Convenhamos que levantar 165 toneladas à força de máquinas soa, no mínimo, antinatural. Eu sei, a física explica, mas a parte irracional do meu cérebro não se conforma.
E então, os sustos. Um atrás do outro. Tremedeiras, sobe-e-desce, puxões bruscos, quedas repentinas, sem folga. Do assento 29C não arrisco olhar pela janela. Vejo nuvens gordas de relance; nem estava chovendo em terra para justificar tanta turbulência. O vizinho da poltrona ao lado me olha assustado. A do outro corredor, como eu, aperta a cadeira da frente com toda sua força, como se isso aliviasse a náusea e o medo. Repito em pensamento o mantra do Lito: turbulência não derruba avião. De fato, só ela não derruba. Mas um conjunto de fatores aliado à turbulência... sim, né?! E se o piloto brigou com a esposa e teve insônia? E se o técnico se esqueceu de verificar aquele detalhe fundamental, e um sistema eletrônico sofre pane justo agora? E se esse for o improvável momento em que a confluência de infortúnios acaba com tudo?
É isso. Terminou. Me desculpem por deixá-los, meus filhos queridos. The end. Fecho os olhos e a imagem do Boeing Dreamliner que caiu quatro dias antes na Índia, a caminho de Londres, vem à mente. Em breve o noticiário anunciará o mesmo, agora com o Boeing 787-300 da Gol, e vocês serão órfãos de mãe – uma mulher em crise de meia idade que resolveu passear em São Paulo com seu esposo por um final de semana, sob seus protestos. Constato que o acaso não está nem aí para intenções ou arrependimentos. Penso em tudo o que deixarei de ensiná-los. Nos cafés-da-manhã não mais compartilhados, nos livrinhos que comprei mas ainda não lemos juntos, nos eventos da escola não frequentados, nas viagens não feitas. Ainda bem que o papai voltará em outro avião.
Depois de atingir a altitude de cruzeiro, torço para que os céus se acalmem. Agora já bem acordada pela adrenalina, considero iniciar o livro fininho de Hilda Hilst comprado horas antes. A turbulência, firme, ri da minha cara: você não vai conseguir desatar o cinto, minha querida. A agonia já dura 45, 50 minutos, não sei precisar. Lembro que a previsão do tempo em Florianópolis mostrava ventos fortes para a hora do pouso, e não pude evitar: se chegasse, visualizei o avião arremetendo. Na primeira vez em que isso aconteceu, eu viajava de Genebra para Londres, de EasyJet, há uns 13 anos. O avião era antigo; a passagem custou muito pouco. O ruído dos motores era alto, e a aproximação ao aeroporto foi rápida e turbulenta. Quando já enxergava a pista, aliviada porque a tortura estava prestes a terminar, o avião voltou a subir. Me tirem daqui!, gritei em pensamento. Quero tocar meus pés no chão. O que está acontecendo, alguém?? Olhava para os lados e me sentia uma ET, já que ninguém esboçava qualquer reação anormal. Quando o piloto enfim anunciou a causa do não-pouso, o vento de cauda, não senti consolo. Então talvez a gente fique rodando, subindo e descendo, até você conseguir pousar? Xinguei o coitado na minha cabeça, sem saber que ele só estava cumprindo normas de segurança.
O avião se aproxima balançando, mas determinado. Começa a frear: sobrevivi! Meus filhos, estou sã e salva. Me instalo no saguão para esperar Alex e olho impaciente para o painel, que demora a confirmar o pouso. Imagino a cena do reencontro: eu reclamando da turbulência; ele dizendo que nem sentiu. Ao abraçá-lo, ouço surpresa o comentário irritado sobre o que tinha sido um dos piores voos da sua vida. Além da intimidante turbulência, a passageira sentada ao seu lado entrou em pânico e chorou, soluçando, do começo ao fim. No pouso… adivinha? O piloto precisou arremeter. Me solidarizo com sua angústia, e rumamos ao estacionamento. Aviso aos avós que estamos a caminho de casa.



Ontem, me submeti a uma cirurgia. Rápida e com baixo índice de complicação, segundo o médico. Mas não isenta de riscos, como li no termo de consentimento apresentado pelo anestesiologista, assinado dias antes, e no outro que me mostraram minutos antes da internação. Sepse, lesões em órgãos adjacentes, hemorragia, trombose e embolia pulmonar compunham a lista de quase uma página. Por pouco não desisti ali mesmo: Obrigada, moça, mas tô indo embora. Em segundos, uma palavrinha mágica surgiu em pensamento: confia. No médico, no destino. Não dá para voltar atrás: assumi os perigos, apesar do medo.
No quarto para aguardar o encaminhamento ao centro cirúrgico torci para que, quando enchessem meu abdômen de ar para acessar e cortar minha vesícula biliar fora, meu coração, que tem uma válvula fora do padrão e de vez em quando bate errado, não me abandonasse. Desejei que os profissionais perfurando e comandando instrumentos dentro do meu corpo não cometessem erros. Ansiei por voltar logo da anestesia e comprovar que aquele momento não tinha sido um encontro de fatores drásticos que acabaria com tudo.
No dia anterior à cirurgia, me lembrei do amigo da minha idade que convive com o câncer e faz procedimentos frequentes com riscos muito maiores do que o meu, e em como ele está sempre positivo. Pensei nas mortes banais, como a da conhecida que se foi ao cruzar a Beira-mar Norte num dia qualquer. E na bênção dos 95 anos da idosa que recentemente conheci numa confraternização de aniversário, bebendo o seu vinho e conversando com todos, sorridente e lúcida.
Voltei ao livro de Oliver Burkeman, Quatro mil semanas, em busca de consolo: “O medo, em sua essência, é a tentativa da mente de gerar um sentimento de segurança quanto ao futuro, falhando e tentando, repetidamente, como se o próprio esforço de se preocupar pudesse, de alguma forma, evitar o desastre. O combustível por trás da preocupação é a demanda interna de saber, com antecedência, que as coisas vão dar certo. Mas é uma luta que nunca venceremos. Nunca se pode ter certeza absoluta sobre o futuro.”
Acordei. Garganta arranhada, tremendo de frio, mas vivinha. Obrigada, universo! Tenho tanto por fazer! Aula de piano (finalmente) agendada para o fim do mês. Compromissos de trabalho. Vacinas nos pequenos. Aproveitar as férias deles, com eles. Pilhas de livros me esperando. Provas de corrida. Almoços em família. Viagens. Simplesmente, existir. Voltar à rotina sem tanto esquecimento do risco que é viver, para desfrutar do momento curto, mas tão especial, de estar aqui e agora.
“…ser, para um humano, é acima de tudo existir no tempo, nesse intervalo entre o nascimento e a morte, com a certeza de que o fim virá, mas sem saber quando. [...] É assim que o nosso tempo limitado nos define por completo.”
Oliver Burkeman